Desci uma ladeira de quase um quilômetro para encontrá-lo.
Num carro, se não me engano azul. Sim, azul, com alguns homens e entre eles, o de cabelos longos e loiros, com o braço para fora da janela. Másculo, viril, com aquela pose e o braço tatuado para fora da janela.
Eu, descendo a rua principal.
Com nome de anjo e tatuagens de demônios. Ele era um menino grande.
Voz anazalada, dentes mau tratados, pura cocaína por entre as gengivas.
Dia desses lembrei de seu sorriso tímido. Seus cabelos longos e soltos naquela noite. Sim, única vez que eu o vira assim. Decerto por querer impressionar-me. Cabelos brilhantes, cheirosos, lisos e loiros. Camiseta de cor única, jeans e sapatos. Camiseta sem perfume, mas com cheiro suave do amaciante misturado ao odor da pele.
Dedos longos, mãos pesadas, braços marcados... toque suave.
O anjo e o demônio.
Noite de festa, cidade toda se encontrando na casa mais tradicional do lugarejo.
Olhavam-se todos entre si, estranhamente. Uma doce menina, desdenhada quando da companhia do menino grande. Quem o conhecia? Quem sabia dele, da sua história feliz ou triste?
Eu sabia, não somente de seus cabelos loiros e seus braços tatuados, mas de sua essência, de seu pai morto e da falta que ele lhe fizera. De seu irmão especial, com o rosto semelhante ao seu, quase idêntico, não fosse os cabelos negros.
Eu sabia de sua poesia, de suas letras recitadas do nada e de sua mania de querer levar minhas sardas consigo. “Pô mina, eu te amo”. Primeira vez que ouvira algo assim: tão puro, tão alto e em bom tom. Dois braços abertos imitando Cristo na cruz e gritando seu sentimento.
O abraço, o cheiro da camiseta, o sorriso de canto de boca, a coisa mais pura que já senti.
Um anjo e um demônio, num só.
Sem compaixão, em seu ato de coragem e nobreza, o fizeram morto brutalmente.
O anjo partira. Subiu aos céus, hora de encontrar seu pai e de brincar de desenhos de flores com os anjos pequenos. Hora de eu o ter para sempre. Meu demônio virou anjo e me ensinou o que é o amor.